Maior grupo do setor elétrico da América Latina, a Eletrobras passa por um dos momentos mais decisivos de sua história. A holding criada há 55 anos e controlada pelo Estado brasileiro está ameaçada por uma política centrada na venda de ativos para pagar suas dívidas e as dívidas da União, com o argumento de ser essa a melhor alternativa para “sanear” financeiramente o sistema.
Ao tomar posse, em julho de 2016, o presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira Jr., afirmou que não tinha planos para vender ativos além da Celg-D e outras seis distribuidoras estaduais de energia (Amazonas, Boa Vista, Ceron – Rondônia, Eletroacre – Acre, Cepisa – Piauí e Ceal – Alagoas). Hoje, entretanto, estão em pauta também as vendas das participações nas Sociedades de Propósitos Específicos (SPEs), parcerias público-privadas cujo investimento vem, na sua maior parte, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O relatório anual da Eletrobras referente a 2016 destaca que a venda da Celg-D foi um “marco estratégico da companhia, que passa a focar seus negócios apenas em geração e transmissão, considerados seus grandes potenciais”.
Completando o cenário, o Ministério de Minas e Energia propõe uma reforma nas leis do setor elétrico permitindo que sejam privatizadas até 14 usinas hidrelétricas, subsidiárias de empresas integrantes da Eletrobras. A perspectiva é vender as SPEs, como Jirau, Santo Antonio e Belmonte exatamente quando registram altos valores no fluxo de caixa, com flexibilidade para, em seguida, poderem vender energia mais cara.
Além de privatizar vendendo os ativos (usinas, linhas de transmissão e subestações mais valiosas), as propostas colaboram para ampliar o mercado livre de energia regulado pela oferta versus demanda. Afirmam que o mercado vai regular o preço para baixo, mas, na verdade, a prioridade é o mercado financeiro. Ampliar o mercado livre significa transformar a energia elétrica em um produto comercial (commodities) em vez de um serviço público essencial, como está no artigo 21, XII, alínea b da Constituição Federal de 1988.
Especialistas alertam para a forte probabilidade do aumento do valor das tarifas para o consumidor que virá em seguida à privatização das usinas e para os riscos da descentralização do sistema elétrico como um todo. A proposta está em consulta pública até agosto, disponível no site http://www.mme.gov.br/web/guest/consultas-publicas.
Clube de Engenharia se posiciona
O Conselho Diretor do Clube de Engenharia, com base em relatório elaborado por Grupo de Trabalho do Setor, constituído por conselheiros do Clube e por convidados, da academia e engenheiros consultores, aprovou o documento intitulado Diretrizes para o Sistema Elétrico Brasileiro (SEB). A partir da análise histórica do setor e da gravidade do quadro atual, o Clube de Engenharia defende a urgência de o país resgatar e restabelecer o caráter e o conceito de serviço de utilidade pública, que deve regular a oferta e a disponibilidade de energia elétrica no Brasil, e considera lesiva ao interesse nacional a hipótese da privatização das empresas do Sistema Eletrobras (Furnas, Chesf, Eletronorte, Eletrosul, Eletronuclear e Itaipu), aventada pelo Governo Federal.
Leia, a seguir, a íntegra do documento e as proposições do Clube de Engenharia:
- O Sistema Elétrico Brasileiro (SEB) tem características que o distinguem dos sistemas de outros países: (i) recursos hídricos abundantes distribuídos por bacias com regimes hidrológicos distintos, representados por longos rios de planalto, cujo aproveitamento hidrelétrico foi feito, na maioria dos casos, com a construção de reservatórios de regularização; (ii) as plantas de geração do país, excetuadas as pequenas termelétricas da Amazônia, estão interligadas entre si e com os principais mercados regionais, através de extensa rede de transmissão, a qual permite a transferência de grandes blocos de energia das regiões que estão com seus reservatórios cheios para aquelas cujos reservatórios estão vazios; (iii) entre todos os países com mercado relevante, o Brasil possui a matriz elétrica com maior grau de renovabilidade de suas fontes (79%, em 2016); (iv) praticamente todos os habitantes do campo e das cidades têm acesso à energia elétrica em suas residências.
- Além da exuberância dos recursos hidrelétricos, o Brasil possui diversificada dotação de outras fontes de energia, inclusive de urânio, para a produção nucleoelétrica. Nesta, a única etapa da cadeia produtiva cuja tecnologia o País não domina é a da construção de reatores em escala industrial. No aproveitamento das demais fontes há independência ainda que não se haja competitividade em alguns segmentos.
- Não obstante essas vantagens comparativas (baixa dependência de insumos energéticos importados, baixo nível de emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE), baixa dependência tecnológica do exterior, o Brasil deixou de ser supridor de energia barata para apoiar sua industrialização. Ao contrário, tornou-se um dos países com a energia elétrica mais cara do mundo, inclusive pelos tributos e encargos. Os consumidores industriais e comerciais podem compensar muitos impostos em suas vendas, mas ainda assim incentivou-se a autoprodução usando em especial combustíveis fósseis e nos períodos de hidrologia desfavorável passaram a vender os excedentes dessa produção para o “mercado livre”. Os consumidores residenciais não podem compensar os impostos e são onerados em mais de 60% irrecuperáveis advindos da carga tributária implícita e explícita.
- O Setor Elétrico sofreu grandes distorções quanto à Matriz Energética, que prioriza outras fontes, inclusive fósseis, com subsídios cruzados a ele desfavoráveis.
- Além disso, o SEB tornou-se vulnerável às situações de escassez hídrica (secas prolongadas) que ocorrem em função das variações climáticas. Nas últimas décadas, a capacidade de acumulação dos reservatórios das usinas não evoluiu ao mesmo ritmo do consumo, porque foi priorizada a construção de usinas hidrelétricas a fio d’água e porque não foram desassoreados os reservatórios existentes. A capacidade máxima de reserva, que já representou o equivalente a 4 anos de consumo nos anos 1980, corresponde hoje a apenas 4 ou 5 meses de consumo nacional. Lembre-se que a acumulação de água em reservatórios é ainda mais relevante para o consumo do líquido, cada vez mais escasso no mundo.
- Em resumo, os principais equívocos e contradições praticados com a implementação das reformas do Sistema Elétrico Brasileiro a partir de 1995 são: a introdução da concorrência na geração, mantendo entretanto centralizada a operação do sistema (ONS) e garantindo às geradoras uma receita baseada em certificados de propriedade sobre a energia gerada (garantias físicas), sem regras para reavaliações dos parâmetros; a utilização indevida de uma variável calculada por modelos matemáticos altamente imprecisos para o longo prazo (o CMO), como a principal referência econômica do mercado (o PLD); a bipartição do mercado em um segmento cativo e em outro livre, o que sobrecarregou enormemente as distribuidoras com um planejamento irreal e não exigiu nenhum esforço de investimentos dos consumidores livres; o emaranhado de contratos entre os agentes dos mercados (regulado e livre), geridos por um ente pouco aparelhado para a função (CCEE); o aumento descontrolado dos custos de transação nas operações entre os agentes e a judicialização das transações entre eles e das relações com a agência reguladora (ANEEL).
- As normas regulatórias do Sistema Elétrico Brasileiro (SEB) compreendem: (i) ambiente de contratação regulada (ACR), que alcança as empresas de distribuição e seus planejamentos quinqüenais para atendimento, principalmente, aos consumidores residenciais, comerciais e serviços públicos e (ii) ambiente de contratação livre (ACL), que atende aos interesses do “mercado livre” para comercialização da energia elétrica e corresponde a mais de 30% da energia consumida, principalmente pelas indústrias. Dessa forma, no “mercado livre”, estabelece-se o preço da energia em função do equilíbrio da oferta e da demanda. Nesse contexto e devido às incertezas típicas da hidrologia tropical, ocorre oscilação do custo marginal de operação do Sistema, criando-se assim situação indutora de especulação financeira, com valorizações descabidas dos certificados de energia (CE), disponíveis para comercialização naquele mercado. Para corrigir tal distorção urge resgatar e restabelecer o caráter e o conceito de serviço de utilidade pública, que se entende deva regular a oferta e a disponibilidade de energia elétrica no Brasil.
- É necessário, pois, restabelecer, e não enterrar de vez, o planejamento do SEB, de modo a assegurar o suprimento de energia elétrica, insumo indispensável ao desenvolvimento do país, a preços módicos.
- Com essa finalidade, são apresentadas as seguintes proposições:
(a) Fortalecer o planejamento estatal do SEB. Entre os temas a planejar devem estar tarifas sociais, a priorização da utilização dos recursos naturais renováveis, metodologias para a sustentabilidade dos grandes empreendimentos e avaliação de impactos sociais e ambientais. A participação da sociedade deverá se dar através da constituição de uma Câmara Consultiva, que inclua representantes das instâncias federativas, empresas, consumidores, pesquisadores e organizações sociais. As análises e propostas deverão ser consolidadas pela Empresa de Planejamento Energético (EPE) em um Plano Nacional de Energia (PNE), para posterior deliberação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).
(b) Estimular a integração com os sistemas elétricos dos países vizinhos, sempre lembrando que a energia elétrica não é uma “commodity” e não pode ser transportada a não ser pelos meios físicos.
(c) Restabelecer o conceito de cobrança de tarifas equivalentes aos custos de produção e operação, assegurada a reposição dos investimentos realizados (tarifa pelo custo incentivado), vigente até 1995, a serem reguladas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Para tanto, os atuais contratos de concessão de serviços de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica serão respeitados até o final dos seus respectivos prazos contratuais e, quando relicitados, o serão sob a modalidade de tarifa pelo custo incentivado, de modo a aumentar a segurança energética do país, reduzir a vulnerabilidade às secas, recuperar a competitividade dos preços da energia elétrica e aumentar a contribuição do SEB ao desenvolvimento nacional.
(d) As novas concessões deverão ser licitadas sob a modalidade tarifa pelo custo incentivado.
(e) As empresas do Sistema Eletrobras (Furnas, Chesf, Eletronorte, Eletrosul, Eletronuclear, Itaipu) foram duramente prejudicadas pela imposição das regras previstas na Lei 12.783/2013 (MP 579/12), sem que as próprias regras fossem cumpridas pelo Poder Concedente. Além disso, a Eletrobras foi conduzida a assumir concessionárias estaduais de distribuição altamente gravosas e suas subsidiárias forçadas a participar de parcerias público-privadas em projetos nos quais o interesse público foi preterido em função dos interesses dos parceiros privados. Seu fortalecimento por meio de medidas saneadoras e de prestígio ao seu papel como elemento central do SEB, especialmente na geração e transmissão, é indispensável. Reafirma-se serem tais empresas as maiores operadoras das concessões de serviços elétricos, sendo seus ativos os estruturantes do Setor, razão pela qual não devem ser alienados. Isso é indispensável porque elas são, também, indutoras do desenvolvimento de tecnologia e engenharia, através de suas equipes técnicas de alto nível que, igualmente, precisam ser preservadas. Deverá ser realçado o papel do CEPEL como grande laboratório de P&D do Setor Elétrico. A hipótese de privatizá-las, aventada pelo Governo Federal é, pois, lesiva ao interesse nacional.
(f) Será necessário promover os ajustes de natureza física, econômico-financeira e organizacional na operação do SEB, bem como atualizar os modelos utilizados para o despacho da geração. Igualmente indispensável será o encaminhamento de medidas necessárias à transição da situação atual para a futura, que dêem segurança ao investidor em empreendimentos de longo prazo.
(g) Fundamental estabelecer critérios rigorosos para o controle dos custos das empresas, para evitar que a retirada do ajuste dos preços pelo mercado redunde em exageros, como ocorreu no passado, que viriam onerar os consumidores.
Este documento ficaria incompleto se não recordasse a essência das recomendações sobre o setor elétrico, aprovadas em diversos momentos – desde 1989 até 2013 – pelo Conselho Diretor do Clube de Engenharia, com ênfase na busca do controle das empresas estatais pela sociedade, para transformá-las em empresas de fato públicas e cidadãs.
É essencial que os Conselhos de Administração passem a ser autônomos em relação ao Poder Executivo, cabendo-lhes definir os critérios de mérito para ocupação dos cargos de direção das empresas, como meio de reduzir drasticamente as indesejáveis interferências políticas externas.
Rio de Janeiro, julho de 2017.