Água subterrânea como alternativa para abastecimento do Rio de Janeiro

O abastecimento de água no Estado do Rio de Janeiro depende, em sua maior parte, de um único rio, o Paraíba do Sul. Com objetivo de propor alternativas a esse modelo, o Clube de Engenharia convidou Humberto de Albuquerque, presidente do Núcleo Rio de Janeiro da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS), para falar no dia 11 de maio sobre “Alternativas ao abastecimento: águas subterrâneas”. O evento foi promovido pela Diretoria de Atividades Técnicas (DAT) do Clube, em parceria com as Divisões Técnica de Recursos Hídricos e Saneamento (DRHS), Engenharia do Ambiente (DEA), Recursos Naturais Renováveis (DRNR) e Recursos Minerais (DRM).
 
Na abertura do evento, Ibá dos Santos Silva, chefe da DRHS, lembrou que o Rio de Janeiro assumiu, nas últimas décadas, papel de destaque internacional nas discussões de políticas do meio ambiente, incluindo a gestão de recursos hídricos, mas que isso ainda precisa se refletir em políticas públicas. "O Rio de Janeiro sediou dois eventos mundiais da ONU, a ECO92, na qual se propôs uma agenda mundial para o século 21, e a Rio+20, quando vieram as cobranças por soluções e metas a serem cumpridas em relação à inclusão social e ao desenvolvimento de forma sustentável. Devemos propor alternativas para o abastecimento de água e irrigação de forma a nos prevenirmos quanto à eclosão de uma crise social. E isso é tão importante que não há falta de recursos que possa justificar ausência de projetos por parte da engenharia de Estado, do urbanismo e da sociedade em geral”, questionou.
 
Humberto de Albuquerque defendeu o aprofundamento de estudos para uso de água subterrânea no Rio de Janeiro. O recurso já corresponde à maior parte do volume de água distribuído para a população em Estados como Maranhão (77% do total) e São Paulo (70%). Cidades como Maceió (AL) e Mossoró (RN) já são, segundo ele, abastecidas exclusivamente com esse tipo de água.
 
As águas subterrâneas se encontram abaixo da superfície da Terra, preenchendo os poros ou vazios das rochas do tipo sedimentar, ou as fraturas, falhas e fissuras das rochas compactas, segundo a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS). Os aquíferos, tipo de formação geológica constituída de rochas permeáveis, servem como uma espécie de "depósito" desse tipo de água, cumprindo uma fase do ciclo hidrológico, já que recebem parte da água que vem da chuva.
 
“Algumas pessoas dizem que não se pode explorar as águas subterrâneas porque elas acabam. Não acabam. No Estado do Rio de Janeiro temos 2.800mm de chuva anuais e seus aquíferos são retroalimentados porque a maioria é sedimentar livre ou livre do cristalino. Existe condição de abastecer comunidades rurais, agricultura familiar e para sustentação de muitas pessoas”, disse ele, lembrando que, no Estado, o recurso deve ser usado como complementar à captação de água superficial. Isso porque o Rio de Janeiro é assentado principalmente sobre rochas cristalinas, que não formam os melhores tipos de aquífero. Essa característica geológica influencia no volume de água disponível.

Gestão deficiente
O palestrante criticou o esvaziamento de políticas para uso responsável desse recurso. “O setor sofre uma série de pressões públicas, principalmente das concessionárias de abastecimento de água, que tentam dizer que é proibido você utilizar água subterrânea. Preservar não é proibir o uso, e sim conseguir captar protegendo", disse.
 
Humberto listou pontos positivos e negativos da gestão de água subterrânea no Brasil. Como positivo, o arcabouço legal, classificado por ele como adequado. “Não falta legislação para ter boa gestão. Já temos o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos, o Plano Nacional de Recursos Hídricos e o Plano Nacional para Águas Subterrâneas”, afirmou. Como pontos negativos estão principalmente a falta de profissionais especializados nos órgãos gestores estaduais, além de sobreposições de leis que geram custos maiores para quem quer perfurar poços e utilizar água subterrânea. Para Humberto existe falta de vontade política para desmistificar e promover a gestão adequada e responsável.
 
"A gestão dos recursos hídricos deve ser de uso múltiplo das águas, ou seja, superficiais, subterrâneas e meteóricas. Uma gestão descentralizada, com a participação do poder público, do usuário e das comunidades", defendeu. "E temos uma das legislações mais modernas e elogiadas do mundo, porque traz o usuário e a sociedade para dentro do sistema para que também possam ter gestão sobre o recurso”.
 
As consequências da gestão deficiente são muitas, segundo Humberto, e vão desde o aumento das perfurações de poços clandestinos, poluição e desmatamento até problemas de saneamento básico para a população devido ao uso de água contaminada. “Não basta ter legislação, é preciso fazê-la funcionar e, para isso, é necessário estrutura administrativa e técnica. Uma pessoa que precisa de um poço não tem condições de esperar até três anos para o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), órgão do Estado do Rio de Janeiro, outorgar a licença de perfuração”, criticou Humberto. Em perfurações clandestinas não é possível saber se foram cumpridas todas as exigências técnicas necessárias, inclusive o acompanhamento de profissionais habilitados.
 
Essas e outras questões foram colocadas por especialistas em uma audiência pública realizada no Senado Federal em 2014. No mesmo ano foi aprovado, no Rio de Janeiro, o Plano Estadual de Recursos Hídricos, que aborda políticas de gestão e planejamento para o setor até 2030, orientando o INEA e todo o Sistema Estadual de Gestão de Recursos Hídricos. Humberto lembrou que, na conclusão da avaliação sobre o potencial hidrogeológico dos aquíferos fluminenses, o plano evidenciou “o nível incipiente de informações a respeito desses recursos hídricos, principalmente quando comparado ao conhecimento das águas subterrâneas em outros estados da União”. O setor público apontou, ainda, a necessidade de “estudos específicos de âmbito local e regional, pois, mesmo considerando as limitações naturais dos aquíferos do estado, as águas subterrâneas por certo terão uma função importante e estratégica no desenvolvimento de várias regiões do estado”.
 
“É preciso começar a levantar informações e dados", defendeu Humberto. "É o cadastro de poços que vai ga
rantir a possibilidade de desenvolvermos mapas hidrogeológicos consistentes com garantia de uso do recurso com qualidade. O mapa que nós temos no Rio de Janeiro foi de quase 10 anos atrás. É preciso, também, implantar uma rede básica de monitoramento. No Brasil, a Rede Nacional de Monitoramento de Água está sendo montada há cerca de cinco ou seis anos. É preciso a cartografia geológica para o estado em escalas adequadas", disse.

Soluções para fiscalização
Em seguida à palestra de Humberto de Albuquerque o debate com os presentes buscou, segundo Ibá dos Santos Silva, retirar pontos de interesse para novas discussões do tema. Uma das questões levantadas foi a fiscalização da qualidade da água captada em poços para consumo e higiene humana. Marguerita Abdalla, conselheira da Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos do Estado do Rio de Janeiro (Searj), lembrou que é necessário cumprir a Portaria nº 2914 do Ministério da Saúde, que dispõe sobre procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade.
 
Para Alberto Daniel de Carvalho, sócio do Clube de Engenharia, engenheiro florestal e servidor do Instituto Estadual de Engenharia e Arquitetura (IEEA), é necessário criar formas de aplicar a portaria que possam ser cumpridas pela população. O engenheiro cita um caso na cidade de Friburgo. Segundo ele, era comum que os prédios no município utilizassem poços para captação de água subterrânea antes do início da concessão privada, uma vez que a distribuição pública era deficiente. "Quando a distribuição passou para a concessão privada, a lei estadual proibiu o uso desse tipo de água. Quando a concessionária detectava que um prédio estava consumindo pouca água, fazia uma denúncia para a vigilância sanitária. Isso porque a água que ia para o prédio precisava ter uma qualidade específica que quem capta do poço artesiano não consegue. E não consegue porque a exigência é do nível de uma estação de tratamento de água, igual à da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), na qual a coleta de água é de minuto em minuto”, criticou ele.
 
Aderson Marques Martins, vice-presidente do Núcleo Rio de Janeiro da ABAS, concordou que a fiscalização é importante, mas afirmou que em certos casos a dificuldade de se fiscalizar prejudica as pessoas que querem perfurar um poço. "O INEA permite a perfuração de poços em regiões com fornecimento de água precário ou onde não tem rede de abastecimento de água. Mas sempre é colocado como pretexto para a proibição o não funcionamento da vigilância sanitária para fiscalizar a qualidade. Então me parece uma inversão das coisas. Devemos corrigir essa impossibilidade de fazer a fiscalização, principalmente nos municípios.” disse.

Proibições
Vale registrar que a dificuldade de exploração de água subterrânea em locais abastecidos por empresas com outorga de distribuição foi criticada por Humberto de Albuquerque. “A Lei nº 11.445/2007, do saneamento básico, diz ‘a instalação hidráulica predial ligada à rede pública de abastecimento de água não poderá também ser alimentada por outras fontes’. A ABAS trabalhou na regulamentação da lei com o objetivo de eliminar dúvidas quanto às interpretações que impediam o uso de fontes alternativas de água. (...) O resultado é o Decreto Federal nº 7217/2010, que ninguém usa. Minha preocupação é fazer com que as pessoas que estão gerindo os recursos hídricos subterrâneos conheçam as informações necessárias para trabalhar", criticou.
 
“A questão que envolve as águas subterrâneas e as concessionárias é comercial, é o interesse pelo lucro", disse André Granato, sócio do Clube de Engenharia e servidor do INEA. "Então é um conflito que vai ser longo. Começou em 2006, na época da Serla [Superintendência Estadual de Rios e Lagoas, extinta em 2009 com a criação do INEA], e agora com empresas particulares. Existe uma vontade de se desqualificar a água subterrânea”.

Uso político
Ibá dos Santos Silva afirmou a existência de uso político da perfuração de poços, como forma de se ganhar apoio popular, principalmente nas cidades da Baixada Fluminense, região que sofre com abastecimento deficiente de água. Para o chefe da Divisão Técnica de Recursos Hídricos e Saneamento do Clube de Engenharia, é preciso um debate qualificado para que essa questão também seja reprimida. “A perfuração de poços está acontecendo. Se há uso político, acontece por falta de políticas públicas ou de uma autoridade que possa atuar”, disse.
 
Elisa Fernandes, do Departamento de Recursos Minerais (DRM) do Estado do Rio de Janeiro, criticou também a aplicação inadequada do chamado “uso insignificante de recursos hídricos”, instrumento de gestão da Lei nº 5.234/2008 que isenta de outorga e cobrança as extrações de água subterrânea em volume diário inferior a 5 mil litros. “Hoje em dia chegou-se ao ponto de a pessoa poder entrar no site do INEA e conseguir até a inexigibilidade da certidão de “uso insignificante de recursos hídricos". Esse instrumento foi criado para atender pequenos núcleos rurais, pessoas carentes de água que não teriam como pagar pelo recurso e foi distorcido para liberar apenas considerando o volume de água. Até mesmo porque o INEA, desde a época da Serla, tinha um volume muito grande de processos e não dava conta, o que o fez deixar de lado os pequenos usuários para regulamentar os grandes. Só que isso tomou proporções imensas, e acontece em toda a região metropolitana. Não se tem dados técnicos e controle de quanto está sendo utilizado e da qualidade daquela água”, alertou.

Papel do Clube de Engenharia
"Existe uma população muito grande que está desabastecida e que poderia ser beneficiada com o uso de água subterrânea, inclusive para irrigação”, diz Humberto de Albuquerque. “Acho que devemos pensar sobre isso. Que tipos de eventos o Clube de Engenharia poderia fazer para chamar atenção da comunidade em relação a esses aspectos? Eu proponho convidarmos as autoridades que lidam com o sistema para explicarem o que está sendo feito no Brasil. É preciso começar com um cadastro, um sistema de informação, uma rede de monitoramento, e iniciar os levantamentos hidrogeológicos, que são as ferramentas fundamentais que o DRM e o INEA vão necessitar para outorgar e licenciar. É preciso conhecer o recurso até para pr
eservá-lo. Por exemplo, saber onde estão as áreas de recarga, como protegê-las, que distância é preciso ter entre poços que captam de um mesmo aquífero. A Agência Nacional de Águas (ANA) e a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), vinculada ao Ministério de Minas e Energia, têm recursos para isso. O Estado do Rio de Janeiro precisa buscar recursos”, finalizou.
 
“É importante a construção de um fórum de debates que trate das alternativas ao abastecimento de água”, afirmou o chefe da DRHS. No encerramento do evento ele lembrou o posicionamento recente do Clube de Engenharia contra a privatização da Cedae e reafirmou que a questão em pauta se soma ao debate da privatização e urge que seja discutida.

 

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