A engenharia brasileira já deu provas notáveis de sua qualidade

Entrevista: Engenheiro civil Ricardo Khichfy, chefe da Divisão Técnica de Construção (DCO) do Clube de Engenharia

"A engenharia brasileira já deu provas notáveis de sua qualidade"

Jornal do CE: Um conjunto habitacional em Niterói ruiu porque não houve estudo adequado do solo. O mergulhão parou as obras porque encontraram um rio e uma rocha no caminho. Sem manutenção, viadutos e passarelas caem aos pedaços. A engenharia nacional sofre. Quais as principais causas?

Ricardo Khichfy: Os problemas de muitas obras em todo o território nacional, infelizmente, estão aflorando em aspectos que antes eram simples questões técnicas que os nossos engenheiros resolviam facilmente. No momento atual, há cada vez mais situações inusitadas e de degradantes evoluções. Os engenheiros civis, principalmente, não são os atores protagonistas do cenário. Veja os exemplos dos prédios em construção para abrigar 400 pessoas do desabamento do morro do Bumba, em Niterói, pelo programa Minha Casa Minha Vida do governo federal. Foram construídos com técnica precária, inadequada para aquele solo, sem estudos de geotecnia e hidrologia, sem estudos preliminares e em um terreno conhecidamente complicado pelo grande volume de água que acalenta quando chove, tornando-o um mangue, onde a água corre abundante na superfície e no subsolo.

Jornal do CE: As fundações executadas sem cuidados podem ser identificadas como causadoras dos sérios problemas que vêm ocorrendo?

Ricardo Khichfy: Não só isso, mas as fundações precisam ser feitas através de estacas, e não de forma rasa e direta como ocorreu, por exemplo, em Niterói. Porém, estacas são caras e o projeto destina-se a pessoas de baixo poder aquisitivo. Os responsáveis pelas edificações levaram isso em consideração. Esse pensamento usual e contaminante é bastante corriqueiro. Muitos seguem na sanha por mais lucros a todo custo. Parecem não se importar com possíveis prejuízos trazidos pelos recalques das fundações, ruínas nas paredes, demolições, nova construção, dinheiro jogado fora e a desesperança das vítimas da tragédia do Bumba. Culpam as chuvas, o deslocamento do solo etc. Se for a chuva, a seguradora da Caixa paga. Se for erro técnico, a construtora é quem paga. Mas quem paga a falta de moradia daquela gente? Quem paga pela obra demolida e mal feita? Os engenheiros tentam fazer o correto, o que aprenderam nas nossas escolas de Engenharia, mas não conseguem. Atuam contra eles forças de outros matizes, não técnicas, que os ordenam a construir daquela forma. Sem projetos, sem sondagens, sem planejamento. Que se construa e depois se faça o desenho. Muitas obras no Brasil são feitas dessa forma. Um exemplo que apresento é o da Linha Amarela, sem projeto executivo.

Jornal do Clube: Falta fiscalização?

Ricardo Khichfy: Infelizmente a fiscalização de obras, principalmente as habitacionais, se resume a acompanhar o cronograma físico-financeiro para a liberação da verba à construtora. Essa cultura brasileira de pouca responsabilidade na fiscalização de obras é antiga, geralmente executada por profissionais recém--formados, terceirizados. Na verdade esta deveria ser uma tarefa de engenheiros experientes, que conhecem bem a técnica. O chamado Mergulhão, de Niterói, se tornou um verdadeiro trauma para a população, por interditar por longo tempo uma das principais vias de acesso à ponte Rio-Niterói. A obra foi paralisada depois de estágio avançado de construção e, novamente, ao se deparar com situações já corriqueiras como esta, vem à tona a falta de estudos geológicos e hidráulicos do terreno. Estava planejada a divisão dos trechos a serem construídos por várias empresas. Não se sabe sob que argumentos. Não era uma obra de proporções absurdas, como a Transamazônica ou a transposição de águas do rio São Francisco, que justificasse um desmembramento de tarefas desse porte.

Jornal do Clube:  O político se sobrepõe ao técnico?

Ricardo Khichfy: A boa técnica construtiva foi deixada de lado, não houve real planejamento e integração de equipes para construir de forma rápida e eficiente em um local de sensível mobilidade para milhares de pessoas. Quando esses fatores aparecem, já se pode antever o que vai acontecer. Constatou-
-se, então, erros de projetos de execução, falta de fiscalização, desperdício de dinheiro público. A razão da negligência no Brasil é a ambiência viciada de erros, de conduta reprovável de muitas autoridades. A Engenharia Nacional, apesar de ser atividade eminentemente técnica, muitas vezes é afetada no meio desse ambiente desolador, e acaba por desqualificar-se nos espetáculos de desastres quase que previamente anunciados.

Jornal do Clube: Existem diferenças entre obras para população de baixa renda e habitações de luxo?

Ricardo Khichfy: Em construção de casas para pobres a qualidade do material é a pior, a mais barata. Estes materiais são fabricados, estão no mercado para serem vendidos e consumidos. É a engenharia do menor preço que reina em obras para as classes de menor poder aquisitivo, não se levando em conta se aquele péssimo material pode resultar no custo de vidas. Nas obras públicas que praticam este critério, os resultados são construções de qualidade duvidosa quando não propositadamente planejadas para a confecção na indústria de contratos aditivos, que servem a inúmeros fins, não somente de construção. Em um passado recente, tínhamos excelentes consultorias de engenharia, firmas que praticamente desapareceram do nosso cenário técnico. As análises de um projeto eram aprofundadas às minúcias e não se preponderava o menor preço, mas sim o melhor preço diante dos critérios, com prazos estudados, planejados e definidos para execução e término. Hoje, temos a esperança que vem da iniciativa privada na construção civil que são os chamados Building Information Modeling (BIM). Essa Modelagem de Informação para Construção planeja todas as atividades de construção integrando tudo sob o comando de um gerente com objetivo de se obter o máximo rendimento operacional, comercial e construção de alta qualidade técnica em todas as fases do projeto. É a construção civil entrando finalmente na era tecnológica.

Jornal do Clube: Sobre o caso Engenhão, uma entidade nacional prova que não há perigo de desabamento da estrutura metálica. O prefeito ironiza publicamente e segue com orientação de uma empresa alemã, mantendo a interdição. Falta respeito e confiança por parte do poder público pela engenharia nacional?

Ricardo Khichfy: Não se trata propriamente de falta de respeito ou confiança do poder público pela engenharia nacional. Já demos provas notáveis em grandes construções como uma cidade inteira dentro de um deserto, uma ponte que é uma das maiores do mundo em concreto armado, a maior usina hidrelétrica do mundo e um estádio que já foi também o maior do mundo por décadas. O fato é que não pode haver dúvidas sobre a segurança de construções para abrigar grandes concentrações humanas. Se uma empresa alemã, idônea, reconhecida e capacitada a emitir laudos e pareceres sobre construções, vem a público denunciar uma possível catástrofe, é realmente um fato a provocar preocupações. Principalmente aos torcedores que vão assistir aos jogos com alegria, torcer pelo seu time e não devem fazer isso acompanhados do medo de uma tragédia. O prefeito está com medo, mas esse medo é o da preservação. Que se realizem, então, as obras de manutenção do Engenhão.

Entrevista publicada no jornal número 531 do Clube de Engenharia.

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