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Lições aprendidas para a retomada do programa nuclear brasileiro

Lições aprendidas para a retomada do programa nuclear brasileiro figura08
Vista Geral dos empreendimentos associados a Angra 3. Fonte: Eletronuclear

Por Leonam dos Santos Guimarães
Doutor em Engenharia pela USP, Diretor-Presidente da Eletrobrás Termonuclear S.A. – ELETRONUCLEAR, Conselheiro de Administração da World Nuclear Association (WNA) e membro do Grupo de Assessoria Permanente em Energia Nuclear do Diretor-Geral da International Atomic Energy Agency (IAEA).
Publicado no Boletim de Conjuntura do Setor Energético – FGV Energia (Agosto 2018)

Os percalços enfrentados durante a construção de novos projetos de usinas nucleares na Europa e nos EUA claramente abalaram a confiança na indústria e gerou dúvidas em líderes políticos e formadores de opinião sobre a capacidade da energia nuclear de contribuir ainda mais para reduzir as emissões de carbono da matriz energética global. Essa perda de credibilidade é injusta, uma vez que os problemas subjacentes são totalmente corrigíveis e dado que a tecnologia demonstrou ainda no século passado ser uma das opções mais rápidas e eficazes para descarbonizar a geração elétrica.

Muitos têm ponderado sobre como diminuir os custos nucleares. Uns argumentam que a comercialização de reatores avançados o mais rápido possível seria a chave, enquanto outros postulam que a construção em série de projetos padronizados e comprovados seria a solução. Ambos os argumentos têm mérito e merecem uma avaliação mais profunda, mas há coisas ainda mais fundamentais para melhorar a economia da geração nuclear, que devem ser alcançadas em ambos os casos.

Entretanto, há também lugares, especialmente na Ásia, onde os projetos de usinas nucleares estão sendo entregues no prazo e dentro do orçamento e, na verdade, um número crescente de países está iniciando programas de geração elétrica nuclear. A construção de novas usinas é uma opção inquestionavelmente competitiva em muitas partes do mundo. A questão é como criar essas condições para o sucesso em todos os lugares.

Os custos de construção de uma usina nuclear são altos em comparação com outras fontes. Portanto, grandes somas de dinheiro precisam ser garantidas antecipadamente. Por outro lado, os custos de combustível e operação das usinas nucleares são baixos quando comparados com a maioria dos geradores termoelétricos convencionais, tornando-as ideais para geração na base da carga, constituindo investimentos muito lucrativos no longo prazo. O tempo necessário para construir a usina e começar a efetivamente gerar caixa também importa muito.

O primeiro passo para reduzir os custos da eletricidade nuclear tem pouco a ver com a tecnologia ou padronização de reatores e tudo a ver com o custo do financiamento. Os custos projetados de novas usinas nucleares são fortemente afetados pela taxa de desconto, medida do retorno financeiro esperado. Os custos da energia nuclear são simplesmente dominados pelo que os proprietários esperam receber, ou precisam pagar.

Alguns responderiam a isso ressaltando que, se houvesse melhor evidência de que as usinas nucleares poderiam ser construídas dentro do prazo e do orçamento, o capital privado se tornaria mais acessível. Embora seja verdade, essa resposta ignora o fato de que as usinas nucleares são projetos megainfraestruturais de importância nacional, com grandes riscos para os investidores, mas também importantes benefícios para a sociedade, tais como garantia da segurança energética, ar mais limpo, mitigação das mudanças climáticas, crescimento econômico regional e desenvolvimento sustentável.

Além disso, os próprios governos são a fonte de alguns dos maiores riscos enfrentados por esses projetos. Há muitos exemplos de interferência política na energia nuclear: casos de projetos cancelados em estágios avançados de construção, casos em que usinas concluídas nunca foram autorizadas a operar, casos em que usinas operacionais foram obrigadas a fechar, apesar de estarem em conformidade com os requisitos regulatórios, e casos em que impostos nucleares específicos se tornaram uma carga tão grande que influenciaram na decisão dos proprietários de descomissionar usinas prematuramente. Esse risco aumenta o custo de financiamento de projetos nucleares, já que os investidores invariavelmente consideram um prêmio adicional para assumi-lo.

Um apoio político forte, consistente e explícito aos programas nucleares é a única maneira de reduzir esses riscos. Os governos podem precisar reforçá-lo por meio de envolvimento direto, fornecendo garantias de empréstimos ou tomando parte do projeto. Eles também devem definir a estrutura do mercado para garantir que os fatores externos sejam internalizados e que seja propiciada estabilidade aos investimentos de longo prazo. Em um mundo que responde às realidades das mudanças climáticas, onde a demanda por eletricidade está crescendo e os países estão buscando um maior grau de segurança energética, tais intervenções são plenamente justificadas.

E quanto às instituições financeiras? Elas deveriam estar buscando financiar usinas nucleares como prioridades de governança ambiental e social. Isto vale especialmente para os bancos nacionais e internacionais de desenvolvimento, muitos dos quais, injustificadamente, se recusam a financiar projetos nucleares. O que nos leva ao segundo passo.

A energia nuclear é a tecnologia mais regulamentada do planeta. É um pouco irônico esperar que as usinas nucleares frequentemente tenham de competir sem assistência em mercados “desregulados”. Os projetos nucleares tipicamente:

  • requerem aprovação a nível nacional, regional e local (em alguns casos até internacional);
  • levam anos de planejamento e são inviáveis de serem continuados sem um consenso político robusto;
  • requerem estudos de impacto ambiental detalhados e longas consultas públicas;
  • são licenciados e regulados por autoridades de segurança independentes, com o poder de parar a construção ou operação a qualquer momento;
  • são abrangidos por tratados e acordos internacionais relativos ao comércio e transporte de materiais nucleares, segurança e responsabilidade civil, etc.

Os reguladores da segurança têm contribuído para atrasos, por vezes de forma injustificada, como quando novos requisitos são introduzidos após a construção da usina ter começado. É preciso evitar a mudança de requisitos regulatórios, para se ter alguma chance de entregar projetos dentro da qualidade, custos e prazos planejados.

Também há muito que pode ser feito internacionalmente em termos de harmonização de regulações, códigos e padrões. A indústria nuclear foi originalmente desenvolvida como uma série de empresas nacionais, mas os projetos têm um caráter cada vez mais internacional. O progresso na harmonização deve ajudar a reduzir a carga de licenciamento do projeto (que pode chegar a centenas de milhões de dólares), aumentar a diversidade e a qualidade da base de fornecedores e reduzir a possibilidade de erros durante a construção. Todos esses aspectos têm impactos significativos nos custos de entrega.

Ao mesmo tempo, há uma ativa discussão em muitos países sobre a adequação das atuais abordagens regulatórias e quais requisitos realmente contribuem para ganhos significativos de segurança. Esse tema deve continuar a ser aprofundado e mudanças práticas acontecerem, especialmente à medida que novas tecnologias inovadoras são trazidas à tona que podem ser injustamente prejudicadas pela estrutura existente. As evidências mostram claramente que a energia nuclear é uma das fontes de energia mais seguras. Seria um desfecho ruim se a regulamentação impedisse o desenvolvimento nuclear ao invés de possibilitá-lo. A regulamentação nuclear e seus códigos e padrões estão fortemente ligados ao desempenho nuclear, o que nos leva finalmente à própria indústria, e ao terceiro passo.

O terceiro passo para reduzir os custos da energia nuclear é, obviamente, que a indústria melhore seu desempenho na construção. Isso exige que todas as partes envolvidas, proprietários, fornecedores e contratados, aprendam as lições do gerenciamento de projetos nucleares anteriores, ao mesmo tempo em que integram tecnologias de ponta e melhores práticas. A construção de megaprojetos é, naturalmente, muito complexa. Essa complexidade cria armadilhas, mas também inúmeras oportunidades de otimização. A regra de ouro da construção nuclear é acertar na primeira vez. Quando um erro é cometido ou a gerência (ou reguladores) decide que o retrabalho é necessário, isso pode levar a danos triplos. Há o custo do trabalho e dos componentes originais, o custo de sua remoção e, é claro, o custo da substituição.

Se este trabalho estiver no caminho crítico do cronograma, isso levará a um atraso no comissionamento, e é aí que realmente começa a doer, na medida em que então juros adicionais são acumulados aos empréstimos que agora terão que esperar mais tempo para ter a receita da geração. Isso confirma a necessidade de priorizar a qualidade no gerenciamento de projetos, ao invés de selecionar produtos ou empreiteiros com preços mais baixos, economizando tempo e custos mais tarde.

Os inaceitáveis atrasos em projetos de usinas nucleares na Finlândia, França e EUA foram agravados pelo fato de que eles eram first-of-a-kind (FOAK) e os países não construíram reatores por décadas, perdendo competência, como resultado. Infelizmente, o termo FOAK acaba se aplicando funcionalmente a projetos nucleares mesmo quando uma tecnologia é construída em diferentes países devido à limitada internacionalização anteriormente mencionada.

Vale a pena notar que quase nenhum dos problemas encontrados nesses projetos pode ser atribuído ao projeto básico do reator (uma ressalva é que a construção não deve começar até que um projeto detalhado seja desenvolvido). A escolha da tecnologia não parece ser a fonte do problema. No entanto, a própria tecnologia oferece a solução. Inovações como a digitalização e a impressão 3D estão transformando a maneira como a indústria faz as coisas. As capacidades de fabricação das cadeias de suprimentos encontradas nos países nucleares mais avançados são um salto em relação aos dias pioneiros. Novas técnicas introduzidas em um país podem ser transferidas para outros, se a indústria local estiver disposta a aprender e os reguladores estiverem dispostos a aceitar a mudança.

As chaves para reduzir os custos dos projetos nucleares são: facilitar o acesso a financiamento, reduzir as barreiras regulatórias e melhorar o desempenho na construção. Comprometer-se com a realização de projetos avançados o mais rápido possível ou com a construção em série de uma frota de reatores padronizados é uma preocupação que se segue aos fatores acima e não os substitui.

Os defensores das energias renováveis muitas vezes se opõem à energia nuclear por causa dos “custos”. É irônico porque há dez anos poderia ser dito a mesma coisa sobre a energia solar ou eólica, mas isso foi motivo para um programa consistente de apoio do governo com a intenção de reduzir o preço dessas tecnologias, não abandoná-las. Este programa de apoio foi justificado, uma vez que as energias renováveis oferecem benefícios distintos e o seu potencial de crescimento é promissor. O mesmo vale para a energia nuclear.

Melhorar o desempenho da construção de usinas nucleares e, em decorrência, sua atratividade econômica, exige que os países não desistam no primeiro tropeço. A indústria pode aprender fazendo, mas isso claramente não é possível se os programas são descontinuados e a expertise desapareça. O compromisso político é essencial.

É possível construir usinas nucleares rapidamente. Em 1996, Kashiwasaki Kariwa 6, no Japão, foi conectada à rede elétrica após apenas três anos, estabelecendo a referência para a construção nuclear. O que fundamentalmente impede que isso seja alcançado novamente? Se os períodos de construção de cinco, quatro ou até três anos se tornassem a norma da indústria, certamente ninguém poderia descartar a priori a energia nuclear como sendo muito demorada ou muito cara para contribuir significativamente na luta contra a mudança climática.

Desde o final do século passado o Sistema Interligado Nacional passa por uma transição hidrotérmica, demandando uma crescente contribuição de termelétricas para atendimento da demanda, simultaneamente a um significativo crescimento na contribuição da energia eólica, de natureza intermitente. Logo, a geração elétrica nuclear tem um importante papel a desempenhar nas próximas décadas para garantir a segurança energética do País, contribuindo para o atendimento à demanda da base de carga do sistema. Nesse contexto, temos a usina nuclear Angra 3 com suas obras paralisadas desde 2015, requerendo um modelo de negócios inovador para sua conclusão. Logo, o aprendizado dessas boas práticas e lições da indústria nuclear mundial será de suma importância para uma efetiva retomada do Programa Nuclear Brasileiro.

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