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Brasil cada vez menos dono da sua indústria

A desindustrialização recorde é um processo que se não for revertido pode transformar o país em mera plataforma para o resto do mundo. Em sete anos, cerca de 1.300 empresas brasileiras foram compradas pelo capital internacional.

Pensando o país de forma estratégica, em dezembro de 2011, o Clube de Engenharia lançou manifesto que alertava para a urgente necessidade de se restituir legalmente proteção às indústrias genuinamente nacionais. O documento, resultado de estudos de um grupo de trabalho formado no Conselho Diretor meses antes, apontava para os perigosos resultados do projeto neoliberal implantado no Brasil principalmente na década de 1990. Entre as primeiras conclusões estava a necessidade da restituição das proteções constitucionais à produção nacional, tendo como foco prioritário e imediato três áreas: indústrias de petróleo e gás, energia e defesa.

Mais de um ano depois, especialistas identi­ficam a desnacionalização como um de nossos maiores problemas, resultado direto da total displicência do poder público no que se refere à de­finição de uma política industrial que garanta desenvolvimento econômico e social com soberania. Sem políticas públicas que façam frente ao aumento do domínio internacional, a economia brasileira se distancia da situação dos países desenvolvidos e dos outros países integrantes do grupo BRICS (Brasil, Rússia, India e China). Em todo o mundo, ao contrário do que ocorre hoje no Brasil, são comuns políticas que têm como objetivo bene­ficiar exclusivamente empresas de capital nacional.

Os números são assustadores. De acordo com a pesquisa “Fusões e Aquisições” da KPMG Consultoria, em 2004, quando a pesquisa começou a ser feita, 69 empresas de capital majoritariamente nacional passaram para mãos estrangeiras. Os números escalaram até 2008 e 2009, quando houve uma pequena queda. Nos últimos três anos, no entanto, o número de empresas compradas por estrangeiros não parou mais de crescer e bateu recordes consecutivos. Em 2010, foram 175 e, em 2011, 208 empresas. No ano passado, 296 empresas nacionais passaram para o controle estrangeiro.

Embora o governo Dilma Rousseff esteja investindo no conteúdo nacional no que se refere às compras do Estado, o fenômeno, que pode ser visto como uma verdadeira tragédia, avança. Segundo o Banco Central, só no primeiro bimestre de 2013 houve um aumento de 221,78% nas remessas de lucros e dividendos das  filiais de multinacionais para suas matrizes em relação ao mesmo período no ano passado. Carlos Ferreira, engenheiro, membro do conselho editorial do Clube e representante da entidade no Fórum Permanente de Desenvolvimento Estratégico do Rio de Janeiro, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), destaca o rombo que isso representa nas contas do país. “Para se ter uma ideia da sangria que a desnacionalização representa, nos últimos dez anos foram remetidos 410 bilhões de dólares pelas empresas transnacio-nais para suas matrizes fora do país”, denuncia. Para deixar claro o que isso representa, Carlos usa como exemplo as reservas do Tesouro. “As reservas deixadas pelo governo anterior ao governo Lula eram de 25 bilhões de dólares. A duras penas, conseguimos acumular mais 345 bilhões de dólares em uma década. É menos do que foi enviado para fora e, vale lembrar, boa parte disso foi para empresas estatais de outros países”.

Resultados inevitáveis

As companhias que adquirem empresas brasileiras são, em sua maioria, multinacionais com centros de pesquisa consolidados no exterior. O desenvolvimento de mentes nacionais não só é barrado – os laboratórios da empresa comprada são fechados –, como o capital nacional passa a alimentar o desenvolvimento e domínio tecnológico de outros países, impactando frontalmente o desenvolvimento do Brasil.

O ciclo vicioso se estabelece de forma ainda mais clara nas concorrências. Empresas grandes, consolidadas internacionalmente, têm maior capacidade ­ financeira que as nacionais, que lutam pelo mesmo mercado. A compra de competidores menores não é rara e, assim, o total controle do mercado é estabelecido.

Os lucros, obviamente, são enviados para as sedes e o país se transforma em chão de fábrica para os seus compradores. A relação da desnacionalização com outra mazela, a desindustrialização, é grande. Multinacionais já possuem seus fornecedores e não têm nenhuma obrigação com o conteúdo local onde estão suas ­filiais. Ao entrar para a cadeia produtiva de uma nova empresa, a antiga nacional pode matar seus fornecedores.

Outros fatores colaboram para a atual situação, como explica o economista Carlos Lessa, ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em palestras e artigos sobre a desnacionalização industrial, a proteção à indústria é apresentada como um assunto que, no passado, era tema relevante e recorrente na imprensa, mas “hoje é tratada como medida de restrição às importações e de abertura de comércio com o mundo globalizado”. A adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) resultou numa limitação fortíssima da soberania nacional em matéria de incentivo à industrialização. O microscópico regime automotivo brasileiro, um pálido plágio da meta automobilística de JK, foi considerado, por Pascal Lamy (diretor da OMC), ‘poten-cialmente uma medida restritiva ou de distorção do comércio’”.

Áreas estratégicas

Com a exceção do setor atômico, não há área a salvo da desnacionalização. Segundo a pesquisa da KPMG, a tecnologia da informação lidera o processo. Setores de alta tecnologia são especialmente sensíveis, uma vez que são os responsáveis pelo real desenvolvimento dos países em todo o mundo. Nesse cenário, a desnacionalização da indústria da defesa se destaca.

Em artigo sobre o assunto, Mauro Santayana falou de um país que está “na contramão do mundo ao desnacionalizar o pouco de indústria bélica que dispõe, com entrada maciça de empresas estrangeiras (entre elas, e de forma agressiva, as de Israel) no parque industrial brasileiro, mediante aquisição de ­ firmas nacionais ou de associação com nossos empreendedores”. Santayana destaca que o cerco estrangeiro à indústria da defesa brasileira chegou a um ponto crítico evidenciado pelo fato de que “todas as empresas nacionais que desenvolveram tecnologia militar nos últimos anos tiveram o seu controle adquirido por grupos internacionais”. Na prática, isso signi­fica que o conhecimento desenvolvido no Brasil pertence agora às multinacionais, que passam a decidir até onde essas empresas em solo brasileiro podem ir no desenvolvimento de novas tecnologias bélicas.

Outras áreas se destacam no rombo cada vez maior causado pela desnacionalização no país Carlos Ferreira cita as empresas automobilísticas como um exemplo clássico. No governo Jucelino Kubichek, no programa “50 anos em 5”, o país foi invadido pelas multinacionais sem pré-requisitos. “A Peugeot Citroen, para se instalar na Argélia, foi obrigada a se associar a uma empresa local. E isso é comum no mundo todo. No Brasil, no início, havia um acordo tácito em que as transnacionais fariam os veículos e as empresas nacionais seriam responsáveis pelas autopeças. Isso acabou. Na área automobilística a desnacionalização foi total”, denuncia Carlos. O Brasil é o quinto maior mercado, o sexto maior montador de veículos e não tem marca própria ou centro de pesquisas e desenvolvimento.

Caminhos possíveis

Restituir as diferenças, de forma inequívoca, entre empresas brasileiras de capital nacional, com sede e centro de decisões e pesquisa no país, de empresas estrangeiras, transnacionais e multinacionais e suas ­filiais, é o que o manifesto do Clube de Enge-nharia reivindica. Seria o pontapé inicial para reverter o quadro atual em que, segundo Carlos Ferreira, “nenhum país consegue se desenvolver”.

Para ir além e, de fato, caminhar para uma solução, Carlos acredita que a participação do Estado é imperativa: “Não vejo nenhuma possibilidade do Brasil sair dessa camisa de força de exportador de produtos primários se não houver uma participação efetiva do Estado na economia”. Enquanto no Brasil essa participação estatal é vista como algo prejudicial e retrógrado, o mundo caminha em sentido oposto, mesmo nos países que compõem o carro chefe do capitalismo neoliberal. A França, por exemplo, tem bem acomodados na esfera pública a distribuição de energia elétrica e gás, além de ter empresas no setor aéreo, automobilístico, naval e de defesa. “Os Estados Unidos compraram um dos maiores ícones do capitalismo, a General Motors, no meio da crise. A empresa é hoje a melhor do mundo ao lado da Toyota”, lembra Carlos.

Há, ainda, a inércia do empresariado. Com os juros mais baixos da história, alta desoneração da folha de pagamento, isenção de impostos e ­financiamentos disponíveis, ainda assim, falta ousadia. “O empresário brasileiro quer viver de renúncia ­fiscal e de incentivo. Investe muito pouco. O governo, pelo seu lado, se preocupa demais com a composição para as eleições de 2014. Pautado pela mídia não encontra a coragem e a vontade política necessárias para enfrentar o problema”, ­ finaliza Carlos.

“ A desnacionalização gera no sistema político um círculo vicioso tão sério como o causado na economia. Controlando o que há de mais poderoso na estrutura econômica e ­financeira, as transnacionais fazem prevalecer seus interesses na formulação das políticas governamentais, nas leis etc.

Isso porque, no modelo político de molde ocidental, a pluralidade de partidos e as elei-ções periódicas não signi­ficam democracia, pois a grande maioria dos eleitos depende de volumosos recursos ­ financeiros e de acesso à grande mídia, especialmente à TV. Ora, a grande imprensa e outras fontes de formação de opinião estão, secular-mente, a serviço de interesses que não são os nacionais.

Foram 1.296 empresas brasileiras desnacionalizadas de 2004 a 2011, período em que as remessas o­ficiais de lucros ao exterior montaram a US$ 405 bilhões, e as remessas dis-farçadas em outras contas, um múltiplo disso. Adicionando as 296 de 2012, o total, des-de 2004, vai para 1.586.

Certamente é importante a iniciativa do Clube de Engenharia em defesa das empresas genuinamente nacionais. É importante, mas não su­ ciente, uma Emenda à Constituição para restituir-lhe o capítulo da Ordem Econômica, inclusive com a distinção entre em-presa de capital nacional e de capital estrangeiro, que foi extirpado do texto votado em 1988, por iniciativa do governo de FHC, executante do Consenso de Washington.

 

É fundamental estabelecer a reserva de mercado para empresas de capital nacional em áreas como as três sugeridas pelo Clube de Engenharia. Não menos prioritário para todos os setores produtivos e ­financeiros, são regras, para serem cumpridas, que estabeleçam ­firmemente a concorrência. Para haver desenvolvimento tecnológico, elevação da renda e da qualidade da produção, é indispensável acabar com o império dos oligopólios sobre o mercado, liderados por transnacionais, muitos dos quais operam como carteis.

Como realizar isso? Assegurar as reservas de mercado para empresas nacionais, ­financiando-as a longo prazo e a juros favorecidos, ajudando-as a investir na capacitação de seus engenheiros e técnicos para absorver e desenvolver tecnologias, praticando inclusive tecnologia reversa e fazendo contratos de transferência de tecnologia, sob adequada supervisão de órgãos estatais, como o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI (que nunca foi dotado para exercer as funções que devia desempenhar). 

A propósito, é urgente para o Brasil revogar a Lei de Propriedade Industrial, adotada em conformidade com os acordos nessa área, ­firmados na Organização Mundial do   Comércio – OMC, e rever esses acordos, denunciando-os se necessário. Além da desnacionalização das empresas privadas e estatais, os governos, principalmente a partir de Collor, desnacionalizaram o próprio Estado brasileiro. Se os brasileiros, engenheiros ou não, querem ser alguma coisa na vida, esse estado de coisas tem de acabar. Em suma, só haverá desenvolvimento econômico e social, e bons empregos para engenheiros e para outros brasileiros, se a produção for realizada por empresas nacionais em regime de concorrência.”

Trecho da entrevista exclusiva de Adriano Benayon, economista e diplomata, autor do livro “Globalização versus Desenvolvimento”, 2ª edição, da Editora Escrituras/SP. Leia a entrevista na íntegra no portal do Clube de Engenharia (https://www.portalclubedeengenharia.org.br/info/a-crescentedesnacionalizacao-da-industria-no-brasil)

 

Matéria publicada nas páginas 4 e 5 do jornal número 529 do Clube de Engenharia.

 

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